EUA e China: uma transição e muitas incógnitas
por Paulo Kliass
A chamada “questão chinesa” é um tema que está cada vez mais
presente na pauta pelo mundo afora, em todo e qualquer tipo de fórum. A
importância, a força, a velocidade e a intempestividade do processo de
transformação daquele país são elementos que contribuem para conformar um
sentimento misto, carregado de ambigüidade e curiosidade. De uma forma geral,
as pessoas assumem uma postura de admiração e de perplexidade pelo que se passa
naquele gigante do Oriente
Também, não é para menos. Afinal trata-se de uma sociedade que
apresenta há milênios traços inequívocos de capacidade de desenvolvimento
econômico, social, cultural, tecnológico, entre outros. Muito antes dos portugueses
e espanhóis se aventurarem a cruzar os mares em suas caravelas, os chineses já
controlavam o fluxo de embarcações na sua área de influência territorial. O
florescimento de rotas comerciais com o Ocidente e outras regiões do mundo
também contou com a presença histórica dos chineses. A contribuição daquela
sociedade é importante ainda no campo das inovações científicas e tecnológicas,
a exemplo das mais conhecidas como a pólvora, a bússola e mecanismos de
previsão sísmica.
Ao longo das últimas décadas, em especial depois da virada do
milênio, a análise do “fator China” passou a ser item obrigatório para qualquer
tipo de avaliação de perspectiva de futuro. E em todos os campos da realidade e
do conhecimento. Na economia, em função do ritmo de crescimento interno e de
sua importância na escala global. Na política, pela sua capacidade de manter um
sistema bastante peculiar, onde se assiste à transição – ainda aparentemente
sob controle - do antigo modelo socialista rumo a algo ainda pouco conhecido em
termos políticos e institucionais. Na diplomacia, pelo papel cada vez mais
estratégico desempenhado pelo país em termos de sua influência geopolítica por
quase todos os cantos do mundo, tanto com os países desenvolvidos como na sua
relação cada vez mais estreita de parcerias com os países em desenvolvimento.
Em termos militares, pela incógnita atualmente verificada de uma nação ainda
não muito militarizada em comparação com o padrão dos países dominadores ao
longo das últimas décadas – mas que sempre exerceu, historicamente, um papel
decisivo nos conflitos regionais.
No campo da ciência e tecnologia, pela surpreendente capacidade
de se equiparar aos padrões do mundo ocidental e de conseguir mesmo a superação
em diversos campos de pesquisa de vanguarda. Em termos demográficos, em função
da dimensão de sua população e dos impactos relativos ao controle de
natalidade, fluxos migratórios do setor rural em direção aos espaços urbanos,
aumento da longevidade, entre outros. Em termos ambientais, pelos riscos
apresentados pelo modelo adotado por aquela sociedade de copiar elementos do
padrão de consumo e organização social ocidental, com os impactos perversos em
termos da questão da energia renovável, dos grandes projetos de intervenção na
natureza, da manutenção de um sistema que pouco parece se preocupar com a
questão da preservação do planeta.
A China ocupa o terceiro lugar dentre os países do mundo no que
se refere à superfície. Seu território só é menor do que o da Rússia e do
Canadá. Em termos populacionais, ela ocupa há muito tempo o primeiro lugar,
contando atualmente com uma população total de 1,3 bilhão, o que representa
quase 20% do total mundial já superior a 7 bilhões. No que se refere à sua
capacidade econômica, a China apresenta o segundo Produto Interno Bruto mais
elevado do globo, sendo superada apenas pelos Estados Unidos. Apesar de não
incorporar o potencial econômico derivado das riquezas naturais, o conceito dá
uma razoável medida da condição da economia dos países, pois se refere à
somatória de todos os bens e serviços produzidos ao longo de um ano. Assim, o
PIB dos norte-americanos é de quase US$ 15 trilhões, ao passo que o chinês
alcançou em 2010 o patamar de US$ 6 tri. Apesar da grande distância ainda
existente entre ambos, o ritmo de crescimento da economia chinesa tem sido
sistematicamente mais elevado do que o estadounidense no período mais recente.
Com isso, há previsões de que antes de 2030 a China já poderia estar ocupando o
primeiro também nesse quesito.
Assim, o que estamos assistindo ao longo das últimas décadas é
uma verdadeira transição de dominação hegemônica no plano internacional. De um
lado, aquele país que sempre foi identificado como a verdadeira face do
imperialismo, em especial no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Os
Estados Unidos, porém, vêm perdendo capacidade econômica e de influência para
exercer sua dominação como sempre fez até recentemente. De outro lado, a China
vem conseguindo avançar de forma expressiva no exercício de sua dominação na
esfera internacional, a ponto de questionar de facto a capacidade
norte-americana. O novo modelo de hegemon [1]ainda está em construção, mas
o que mais chama atenção dos analistas é a possibilidade de se romper o padrão
histórico até aqui verificado. Qual seja, o fato de que, no passado, a questão
do exercício da dominação imperialista sempre foi solucionada com base na
imposição ou na disputa de natureza militar – as guerras, em última instância.
No período contemporâneo, a hipótese de um conflito dessa natureza parece pouco
provável, uma vez que existem recursos e arsenais bélicos capazes de por fim à
própria Humanidade caso sejam utilizados para os fins que se destinam em escala
planetária.
Não obstante, poucos acreditam que a transição se dê de forma
absolutamente tranqüila, em um processo onde os dirigentes políticos
norte-americanos sejam convencidos da inevitabilidade da superioridade dos
chineses e se disponham a lhes passar o bastão do império da vez, tão
singelamente como fazem os atletas corredores da mesma equipe em uma prova de
revezamento. Assim, esse é um dos grandes desafios intelectuais de nosso tempo [2].
A tentativa de compreender esse complexo processo de transição entre os
dominadores e buscar desenhar, com um algum grau de precisão, os diversos
cenários possíveis para os momentos do futuro.
Um dos fatores que mais contribuem para introduzir incertezas
na avaliação do conflito latente entre as duas potências é, como que
paradoxalmente, a sua própria interdependência. Apesar da distância geográfica,
apesar dos modelos de sociedade se revelarem bastante distintos, apesar dos
conflitos de interesses entre as elites políticas representadas em Washington
ou em Beijing, apesar das heranças históricas e culturais serem igualmente
distantes, a verdade é que o fator econômico acabou por aproximar bastante os
dois países . E o fez de uma forma tão inusitada, que provavelmente não
poderiam ter imaginado Richard Nixon nem Mao Zedong, quando da primeira vista
de um Presidente dos EUA ao Chefe de Estado chinês após a Revolução de 1949. Lá
se vão quase 4 décadas, quando ocorreu o famoso encontro em 1972.
Desde o início dessa aproximação política e econômica, o volume
de transações comerciais entre os dois países têm aumentado de forma
significativa. Em 1990, por exemplo, a corrente de comércio exterior entre eles
era de US$ 21 bilhões. O total das exportações dos EUA em direção à China era
de US$ 5 bi, ao passo que importavam US$ 16 bi. Ao verificarmos os dados de
vinte anos depois, os valores surpreendem. "No ano passado, o total do intercâmbio
comercial salta para US$ 457 bi, uma vez que os EUA exportaram no ano passado
US$ 92 bi para a China, de onde importaram o equivalente a US$ 365 bi.
Por outro lado, a a dependência mútua pode ser confirmada pela
presença de empresas multinacionais, em especial as norte-americanas, em
território chinês. Tal fenômeno de “deslocalização” industrial deveu-se à
estratégica opção efetuada pelo Estado chinês, quando abriu as possibilidades
de criação de Zonas de Processamento de Exportações em seu espaço econômico.
Assim, os grandes grupos internacionais passaram a enxergar nessa alternativa a
possibilidade de maximizar sua rentabilidade, saindo em busca de fatores de
produção a menores custos. A mão-de-obra chinesa é bem barata e o poder público
se encarregava de fornecer a infra-estrutura necessária, como transportes,
energia e outros. Era um modelo perfeito para elevar a margem de lucro de tais
conglomerados na etapa da globalização. O resultado pode ser sentido na maciça
invasão de produtos “made in China” em todos os continentes.
Outro aspecto estratégico da vinculação entre os dois pólos em
disputa pela hegemonia mundial refere-se ao volume de reservas internacionais
acumuladas pela China. Isso só foi possível, ao longo de décadas, graças à
geração de saldo superavitário em suas transações comerciais com o resto do
mundo. Atualmente aquele país possui por volta de US$ 3 trilhões em sua conta
de Balanço de Pagamentos a título das reservas. Dentre os vários tipos de
ativos monetários e financeiros que constituem esse estoque, há por volta de
US$ 1 tri em títulos da dívida pública norte-americana. Um paradoxo que atua
como moderador para os que busquem soluções intempestivas. Ou seja, trata-se de
funções essenciais desempenhadas por um e por outro lado na manutenção de um
delicado equilíbrio econômico- financeiro.
Ao operarem segundo as leis de acumulação do capital, as
empresas norte-americanas acabaram por exportar emprego e renda para o
território chinês. Tanto que nos momentos de crise, a resposta protecionista
vem sempre marcada por lemas como “Buy american” “Keep american jobs” e
outros do gênero. Porém, o quadro se agravou ainda mais no período mais
recente, em função do aprofundamento da crise no próprio território
estadounidense. Isso porque um conjunto de empresas financeiras e
não-financeiras faliram ou foram compradas pelos chineses ou foram mesmo
adquiridas por meio de engenhosos acordos financeiros internacionais. Com isso,
elas deixaram de ser “exclusivamente” norte-americanas. Seus dirigentes passam
a responder a outros interesses que não apenas o desejo de Washington.
Literalmente, elas se internacionalizaram.
O quadro é complexo e os movimentos lembram os do jogo de
xadrez. Parece não haver dúvidas de que, numa perspectiva de médio e longo prazos,
a transição entre impérios esteja em marcha. No entanto, restam ainda muitas
dúvidas e incógnitas a respeito de sua natureza, trajetória e evolução
temporal.
NOTAS
[1]Termo que tem sua origem no grego, que vem sendo utilizado nas ciências sociais no sentido de conferir uma abordagem mais ampla a respeito do processo da dominação e do exercício da hegemonia, em especial entre países.
[2] Ver: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18903
[1]Termo que tem sua origem no grego, que vem sendo utilizado nas ciências sociais no sentido de conferir uma abordagem mais ampla a respeito do processo da dominação e do exercício da hegemonia, em especial entre países.
[2] Ver: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18903
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Debate Aberto, 10/11/2011
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