por Paulo Kliass
O governo parece estar querendo comemorar, com
direito a rojão e fogos de artifício, mais uma provável vitória nas votações no
Congresso Nacional. A lógica fica por conta do clima de polarização parlamentar
no estilo “base aliada x oposição”, em torno da tentativa de aprovação da
chamada PEC 61/2011. Para quem não acompanha o andamento e as conseqüências da
matéria, até parece que se trata de uma vitória do “bem” contra a oposição
conservadora, liderada pelos demo-tucanos. No entanto, a coisa é muito mais
complicada do que aparece à primeira vista. Vamos tentar entendê-la melhor.
Comecemos por decifrar o “legislativês”. PEC é a sigla
que identifica uma “Proposta de Emenda Constitucional” em tramitação no
Congresso Nacional. Para sua efetivação, é necessário que a proposição seja
aprovada em 2 votações em cada uma das casas legislativas (Câmara dos Deputados
e Senado Federal), sendo necessária uma maioria de 3/5 dos parlamentares
presentes a cada votação. Esse esforço todo se baseia nas regras existentes
para alteração da Carta Magna, uma vez que a idéia é que as decisões emanadas
da Assembléia Constituinte Soberana de 1988 não poderiam ser alteradas assim
com tanta facilidade por qualquer composição de legislatura. [1]
E a tal da PEC 61/2011 trata daquilo que ficou
conhecido como o mecanismo da “Desvinculação de Receitas da União”, a DRU. A
proposta altera o art. 76 da porção do texto constitucional chamado “Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias” – ADCT. A versão atual daquele
dispositivo estabelece que a DRU é válida apenas até 31 de dezembro de 2011. E
a PEC se encarrega de prorrogar o prazo por mais 4 anos, até final de 2015. Mas
afinal, o que vem a ser esse mecanismo e qual o sentido da DRU? Por que tanta
polêmica em torno da medida?
Na verdade, tudo começou com o Plano Real, em 1994.
Um dos pilares daquele conjunto de ações que visava a estabilidade
macro-econômica e a derrubada da inflação era o controle rígido dos gastos
públicos e a geração sistemática de superávits primários para o pagamento de
juros da dívida pública. Para assegurar que tal meta não seria abandonada, a
equipe econômica conseguiu introduzir no texto constitucional a liberdade para
que o Poder Executivo pudesse manobrar a execução do Orçamento da União em até
20% do total arrecadado. Ou seja, as receitas ficariam “desvinculadas” de sua
obrigação constitucional de se converter em despesas direcionadas, em áreas
como saúde, educação, previdência, assistência social e outras. Uma
pequena/grande “mágica” para liberar a execução orçamentária de sua função
original e, assim, obter a geração de saldos que se converteriam em despesas
“especiais” - pagamento de juros e serviços da dívida. Foi a famosa “Emenda
Constitucional de Revisão” - ECR n° 1 de 1994. A partir dela
criou-se a figura do chamado “Fundo Social de Emergência” - FSE, que seria
contabilmente o volume de recursos obtidos com os mencionados 20% do total do
Orçamento da União, de livre utilização. A medida inicial tinha validade
prevista apenas para os exercícios de 1994 e 1995.
A partir de 1996, há uma alteração de nome e o FSE
passa a ser conhecido pela sigla de FEF, de “Fundo de Estabilização Fiscal”.
Apenas uma mudança de nome, com a mesma essência. Por meio da aprovação da
Emenda Constitucional – EC n° 10/1996, o mecanismo que institucionalizara a
ortodoxia no trato da matéria orçamentária foi novamente prorrogado. Ele ficou
válido até o final de 1999. Mais à frente, ocorre nova alteração na
Constituição. Assim, por meio da EC n° 27/2000, o mecanismo é novamente
prorrogado por mais 4 anos, sendo válido até final de 2003. A novidade é que, a
partir de então, não mais atende pelo nome de FEF, mas pelo termo de
“desvinculação”. Isso porque o texto do art. 76 da ADCT começava assim: “É
desvinculado de órgão, fundo ou despesa, no período de 2000 a 2003, 20% (vinte por
cento) da arrecadação de impostos, contribuições sociais da União...”
Ao longo desse período – o mandato de FHC – todas
as sessões as propostas receberam críticas e votos contrários da oposição,
liderada pelo PT. Em 01/11/95, na Câmara dos Deputados – CD, os encaminhamentos
contrários eram dos deputados Marcelo Deda e José Genoíno entre outros. Em
13/02/96, no Senado Federal – SF, manifestavam-se contra a medida Marina Silva,
Eduardo Suplicy e José Eduardo Dutra. Mais à frente, 16 de julho de 1997, nova
votação para prorrogação da medida e mais uma vez o PT encaminhava
contrariamente na CD, com a manifestação de Paulo Bernardo e Jacques Wagner. Em
5 de novembro de 1997, o mesmo ocorre quando da votação no SF. Na última
votação durante o mandato de FHC, a CD aprova em 12 de janeiro de 2000, com a
oposição da bancada do PT, liderada por Aloísio Mercadante. Em 23 de fevereiro,
o SF aprova a medida, contra os votos dos senadores Eduardo Suplicy, José
Eduardo Dutra, Marina Silva, Heloísa Helena, entre outros.
Porém, tudo mudou a partir de 2003, quando Lula foi
eleito para seu primeiro mandato presidencial. O novo governo consegue aprovar
a EC n° 42/2003, com o objetivo de prorrogar a DRU por mais quatro anos. Para
tanto, o PT liderava a base aliada para votar favoravelmente à nova PEC, que
assegurava o livre uso de 20% dos recursos do Orçamento da União, exatamente
como das outras vezes anteriores quando o ocupante do Palácio do Planalto era
do PSDB. Mais à frente, surge nova necessidade de prorrogação da mesma medida.
E assim, já no segundo mandato de Lula, o governo consegue aprovar a EC n° 56/2007,
assegurando a continuidade da vigência da DRU até 2011. E assim chegamos aos
dias de hoje. Como o fim de 2011 está se aproximando, o governo da Presidenta
Dilma encaminhou a PEC 61/2011 ao Congresso Nacional, para que continue a ter à
disposição a mesma flexibilidade orçamentária prorrogada por mais 4 anos.
Para que se tenha uma noção do volume de recursos
envolvidos, basta levar em conta os valores previstos para a execução
orçamentária do ano em curso. O total previsto para a arrecadação de impostos e
contribuições da União é de aproximadamente R$ 900 bilhões para 2011. Assim,
graças ao mecanismo da DRU, o governo tem se permitido a obtenção de uma margem
de manobra de quase R$180 bi na realização de despesas da União. Com isso,
tenta viabilizar o não cumprimento das destinações previstas para os gastos
vinculados (a exemplo de saúde, educação e previdência social), com o objetivo
de gerar o superávit primário previsto de 3,5% do PIB – para pagamento de juros
e serviços da dívida pública. A meta anunciada para o ano que está terminando é
de um superávit no valor de R$ 128 bi para essa rubrica. Ou seja, trata-se da
continuidade da política de transferência de recursos públicos para uma
atividade absolutamente parasita e improdutiva, reforçadora do processo
perverso de financeirização de nossa economia.
Apesar da Lei Orçamentária para 2012 ainda não ter
sido aprovada pelo legislativo, a proposta encaminhada pelo governo prevê uma
receita inicial de imposto e contribuições no valor de R$ 900 bi (que tradicionalmente
se revelará mais elevada ao longo do exercício). Com a vigência da DRU, os 20%
de livre manuseio para o ano que vem será equivalente, no mínimo, aos R$ 180 bi
do ano atual. Já a meta de superávit primário foi elevada para R$ 140 bi,
quantia a ser destinada a pagamento de juros e serviço da dívida pública.
Além disso, vale a pena mencionar outro mecanismo
utilizado pelo Poder Executivo para comprimir a realização de despesas
orçamentárias efetivas e gerar saldos para uso na esfera estritamente financeira.
No caso, refiro-me ao termo do “orçamentês” conhecido por “contingenciamento”.
Trata-se de uma prática de não liberar o recurso orçamentário, inicialmente
previsto, para ser utilizado pelo órgão gerador da despesa na ponta do sistema
da administração pública. O recurso existe, está oficialmente disponível, mas o
órgão público não “consegue” efetuar o gasto – uma vez que depende da
autorização de órgãos da Esplanada. Com essa prática perversa de gerar
“economias fiscais”, o que o governo faz - na verdade - é retirar recursos da
atividade fim da função do Estado para direcioná-los à função estéril do
circuito puramente financeiro.
Por tudo isso é que não há muito a se comemorar na
eventual aprovação, para um período que vai se completar 21 anos consecutivos
em 2015, do mecanismo da DRU. Mais uma vez o governo de plantão repete o dever
de casa de satisfazer aos interesses e desejos do sistema financeiro e deixa de
cumprir com as aspirações da maioria da sociedade brasileira, que almeja a
elevação dos investimentos estatais em setores estratégicos e a ampliação dos
gastos públicos na área social.
NOTA
[1] A primeira votação na CD ocorreu em 08/11/2011. A segunda votação na Câmara está prevista para dia 22/11. Em seguida, há necessidade de mais 2 votações no Senado, antes ainda do início do recesso de fim de ano.
[1] A primeira votação na CD ocorreu em 08/11/2011. A segunda votação na Câmara está prevista para dia 22/11. Em seguida, há necessidade de mais 2 votações no Senado, antes ainda do início do recesso de fim de ano.
Paulo Kliass é Especialista
em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e
doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Debate Aberto, 17/11/2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário