Conheça a história do maestro
Letieres Leite e sua Orkestra Rumpilezz, que experimenta confluências entre
jazz, música erudita e candomblé
por Pedro Alexandre Sanches
A
sala de concerto está tomada por músicos elegantemente vestidos de branco. Eles
formam não uma orquestra, mas uma “orkestra”, composta e disposta de modo algo
diferente do habitual. Os 14 músicos de sopro formam um semicírculo ao fundo e
estão todos vestidos de bermudas e chinelos. Portando trajes um pouco mais a
rigor, cinco percussionistas ocupam o centro e a frente do palco. Eis a
Orkestra Rumpilezz, da Bahia, idealizada e dirigida pelo maestro Letieres
Leite.
Vestimentas
e disposição dos músicos podem parecer detalhes de menor importância, mas não
são. Fornecem imagem correspondente aos sons emitidos pela orquestra e definem
o que há de subversivo nessa experiência musical. A chamada música erudita, de
padrão europeu, sempre privilegiou melodia e harmonia. Ao ritmo, fosse na música
“erudita” ou na “popular”, sempre coube o fundo do palco, aquele lugar
apelidado de “cozinha”. O inconsciente coletivo dita, de modo geral, que
melodia e harmonia são “brancas”, e ritmo é “negro”, seja aqui neste país onde
(não) somos racistas, seja em qualquer parte do mundo. Na Rumpilezz, essa
lógica foi simbolicamente invertida.
Não
é por acaso que o mestiço Letieres Leite, de 50 anos, propõe com sua orkestra
demolir o paredão que separava “música erudita” e “música popular”, “Primeiro
Mundo” e “Terceiro Mundo”, casa grande & senzala. “O trabalho é inspirado
na percussão baiana e dedicado aos percussionistas. A música deles possui
rigor, organização, conceitos estáveis”, define Letieres. “É o contrário do que
às vezes se pensa, que essa sistematização não existiria pelo fato de esses
músicos utilizarem a tradição oral como ferramenta básica. A estrutura da
música sacra afrobaiana é extremamente rigorosa, forte, organizada. O figurino
acompanha esse raciocínio.”
A
matriz essencial para a Rumpilezz é a música de candomblé, ou música sacra
afrobaiana, como prefere dizer o maestro. Rum, pi e le são
os nomes dos atabaques que norteiam os cânticos e toques de orixás nos ritos
religiosos do candomblé. Do jazz vêm a orquestra de sopros e o zz que
completa o nome da orkestra. “Houve um período em que o candomblé era
perseguido pela polícia. O atabaque e a capoeira eram associados à vadiagem”,
evoca Letieres. “Mas toda essa música foi preservada nos terreiros de
candomblé, que são o maior centro de preservação da cultura baiana.”
Estamos
perto de uma nomenclatura que é das mais polêmicas na música “popular”
brasileira do final do século passado. Especialmente ao longo da década de
1990, parte substancial da música afrobaiana foi embalada para consumo imediato
sob o rótulo de axé music. E Letieres conhece muito de perto essa realidade:
desde 1997, ele é músico e arranjador principal da banda de Ivete Sangalo, uma
das líderes incontestáveis da axé music e da indústria do carnaval baiano.
“Prefiro
dizer música afrobaiana, porque a palavra axé tem um significado muito maior do
que deram”, afirma o arranjador que deixou suas impressões digitais em hits de
massa como “Canibal” (1999), “Pererê” (2000), “Festa”(2001), “Sorte Grande” (2003)…
Refere-se aos significados do termo iorubá “axé” na religiosidade africana:
energia, poder, força da natureza. Assim o maestro define o conjunto
heterogêneo que engloba a música sacra afrobaiana, o pulso rítmico de
agremiações percussivas como Ilê Aiyê e Olodum e, por que não?, a axé music: “É
uma música que foi formatada, preservada e difundida por pessoas negras de
baixa escolaridade que não conseguiram sistematizar seu conhecimento”.
Letieres
demonstra ter exata percepção da dimensão que tomou a música baiana após a
prospecção brutal feita pelas gravadoras multinacionais, em especial a partir
do estouro ultracomercial do grupo É o Tchan. “A cultura baiana sofreu uma
estagnação do sentido de invenção e investigação, em detrimento de uma arte de
consumo mais imediato. Músicos extremamente criativos passaram a trabalhar em
escala industrial porque têm retorno financeiro mais rápido.”
Ele
é exemplo vivo disso. “Ivete é ímpar, faz os músicos se sentirem valorizados.
Emprestou equipamentos para a gente”, elogia. “Ela tem a preocupação de que o
ritmo seja valorizado, 70% do palco é a percussão. A prática diária de
entretenimento para mim é uma escola. Operacionalmente, é uma rotina
pesadíssima, mas é um prazer. A melhor opção profissional é trabalhar com essas
estrelas.” Por essas e outras, não é raro Letieres estar ausente das
apresentações, como aconteceu em um dos dois concertos da Rumpilezz em São Paulo , em julho
passado. Quando isso acontece, a regência é assumida pelo saxofonista e
flautista André Becker, de 43 anos.
Trajetória
de convergências
A
dupla militância de Letieres conduz a uma evidência nem sempre percebida. Por
ironia (ou seriam apenas os fatos da vida?), há investimento indireto e direto
de Ivete Sangalo (e de sua produtora) no trabalho experimental, rigoroso e
musicalmente arrojado da Orkestra Rumpilezz. Com extratos do conhecimento
intuitivo e não-sistematizado da música de rua da Bahia, Letieres espalha para
além de várias fronteiras o recado de que nossa música (a brasileira, ou
melhor, afrobrasileira) não é sabedoria bruta, grosseira ou de segunda
categoria. Muito pelo contrário.
A
trajetória profissional de Letieres é de várias convergências, desde a
juventude. Era percussionista diletante em 1979, quando se tornou estudante de
Artes Plásticas na Universidade Federal da Bahia (UFBA), a mesma que noutros
tempos abrigou as experimentações euro/afro/brasileiras dos músicos e
professores Hans-Joachim Koehlreutter e Walter Smetak, ambos alemães, e Ernst
Widmer, suíço. A aproximação do sax e da flauta o levaria à Áustria em 1984, para
estudar música no Konservatorium Franz Schubert, de Viena.
Foi
nessa fase que começou a experimentar confluências entre jazz, música erudita e
candomblé e a compor os temas que culminariam no álbum de estreia Letieres Leite
& Orkestra Rumpilezz (Caco Discos/Biscoito Fino, 2009) e
nos cada vez mais frequentes concertos Brasil afora. “Se eu fosse usar o samba,
já estava bastante estilizado. Outro elemento já muito utilizado na música
instrumental era o baião, com seus derivados. Percebi que quanto ao universo
percussivo baiano havia ainda uma timidez, exceto por Moacir Santos e a
Orquestra Afro-Brasileira. Comecei a escrever as primeiras composições em 1984” , lembra.
“Todos
os temas são originais, só uso a música sacra afrobaiana como referência. Elejo
um ritmo, como um toque de orixá. Pego um aguerê dedicado a Oxóssi, desconstruo
e vou compondo para cada seção de sopro da big band”, explica.
“Todos os instrumentos de sopro utilizam células rítmicas resultantes da
desconstrução dos toques de candomblé. A tuba é o atabaque rum, os saxofones
são os atabaques le, e assim por diante. Esse é o tecido da Rumpilezz.”
Do
período em Viena para cá, aconteceram na Bahia Luiz Caldas e Ilê Aiyê, Olodum e
Margareth Menezes, Daniela Mercury e Carlinhos Brown, Banda Eva e É o Tchan,
Claudia Leitte e o Rebolation do Parangolé. Multivalente, Letieres tocou
com Paulo Moura, Hermeto Pascoal e Raul de Souza, mas também adentrou o mainstream pop,
acompanhando Gilberto Gil, Elba Ramalho, Lulu Santos, Daniela Mercury, Jammil e
Uma Noites e a Timbalada de Carlinhos Brown.
Ele
admite ter admiração pelo jazz baiano testado por Caetano Veloso no disco Livro (1997),
mas diz que não há relação direta entre ambas as experiências: “Eu já tinha as
composições muito tempo antes. Acredito que a inspiração de Livro deva
ser a mesma que a minha, a música ancestral rítmica da Bahia”.
Entre
os integrantes da Rumpilezz, há quem toque em filarmônicas e na Orquestra
Sinfônica Brasileira, e há quem toque com Daniela, Brown e Ana Carolina. O
mestre de percussão, Gabi Guedes, tocou reggae por uma década com o jamaicano
Jimmy Cliff. Letieres conta que há “alagbês” do candomblé no corpo de
percussionistas da Rumpilezz, e decifra: “Alagbê é o ogan que tem o cargo de
cuidar dos toques e cânticos do candomblé. O atabaque rum é o elemento
principal do candomblé. É muito difícil alguém tocar o rum se não for um
iniciado. Tem que ser um alagbê.”
Como
se vê, a Rumpilezz roça diversos elementos que costumam atiçar preconceitos em
nossa sociedade ainda eurocêntrica, apesar de repetirmos à exaustão o orgulho
pela “democracia racial” definida por Gilberto Freyre – e apesar de Salvador
ser “a maior cidade negra fora da África”, como Letieres gosta de lembrar. A
música formal produzida por sua orkestra faz fronteiras e estabelece
relações diplomáticas (quando não afetivas) com a música negra das ruas, as
“cozinhas” percussivas, as não raro demonizadas religiões afrobrasileiras, a
axé music.
Igualmente
eurocêntricos e embranquecidos, os meios de comunicação e as universidades têm
sua responsabilidade na repulsa difusa com que a sociedade trata aquelas
modalidades, como Letieres também demarca. “Pela riqueza e diversidade que
possui, a percussão não é reverenciada como devia na academia e nos meios de
comunicação.”
A
participação do artista nesse mosaico está longe de se reduzir ao tão criticado
bombardeio midiático da indústria axé-carnavalesca. Ele é fundador e diretor
pedagógico da Academia de Música da Bahia, especializada no ensino de música
popular. Mantém, no bairro da Amaralina, a Casa Rumpilezz, que além de fazer
música passa adiante os saberes da orkestra para crianças (na
Rumpilezzinho) e enfrenta questões de gênero: “Fui muito cobrado por não ter
mulheres na orquestra, por elas mesmas. Fizemos a Rumpilezz de Saia”, conta.
Por
acaso ou pelos fatos da vida, a Orkestra Rumpilezz se consolidou a partir de
2006, em concomitância com o desmoronamento do carlismo baiano e a decadência
de seu criador, Antonio Carlos Magalhães (1927-2007). Governada desde janeiro
de 2007 por Jaques Wagner (PT), a Bahia tem testemunhado nos primeiros anos
deste século a perda de hegemonia do “axé system” e, consequentemente, uma
tendência cada vez maior à diversificação musical.
Em
2009, por exemplo, a Rumpilezz participou da faixa “Maldito Mambo”, do
disco Chachacha, dos Retrofoguetes, uma banda baiana de surf rock.
Letieres reconhece na movimentação política motivações para as mudanças já mais
que perceptíveis: “Toda alternância de poder leva à busca de coisas contrárias
ao que existia”.
E,
sim, o mundo, o Brasil e a Bahia continuam povoados por candidatos potenciais a
“mocinhos” e “bandidos”. Mas talvez fosse conveniente dar uma espiadela mais
atenta nos músicos da cozinha de uma Ivete Sangalo ou de uma Claudia Leitte,
toda vez que os ouvidos ficarem cansados ou congestionados por uma propaganda
chata de rede de TV paga ou por um hit chicleteiro de verão. Como diria a
pálida gaúcha Elis Regina, as aparências enganam, aos que odeiam e aos que
amam.
Fonte: Redeforum, 31/10/2011
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